domingo, julho 02, 2006

A 100 À HORA - Capítulo 10

Capítulo 10

Continuado por: Marta Luís

Acabei de chegar, e já todo eu ansiava que fosse final do expediente, o que normalmente acontece só lá para as dez da noite. São oito e meia da manhã, e tenho a terrível sensação de que, todos me olham de lado, como se realmente, eu retornasse diferente do que era, há poucos dias.
Sei que já é terça-feira, sim, faltei um dia ao escritório, e depois?...Ninguém morreu, aliás, liguei a cancelar tudo o que tinha para ontem na agenda.
Na portaria, parecia tudo igual, até as flores, mas voltando atrás uns instantes, vejo o Sr. João, no cumprimento de cabeça habitual, e logo aí, um sobrolho franziu.
No elevador, a Marlene já com os jornais de hoje debaixo do braço, no seu fato saia casaco impecavelmente bem passado, nem bom dia me disse, o que não acho nada normal, tendo em conta que me apaparica todos os dias, de forma extremamente insinuada, de cada vez que se cruzamos, em trabalho ou não.
Ninguém me espera na sala, e pensava eu, que ela adiara os compromissos para hoje, para não fazer esperar mais os clientes.
Entro no meu gabinete, e nem sequer cheira a café…a minha assistente está de mau humor, e eu estou realmente, sem paciência, como há muito não me trancava, indisponível para qualquer tipo de conflito, quer profissional, quer pessoal. Trago o corpo cansado de tanto prazer, e também da viagem, e o cérebro desgastado de tanto tentar desenrolar-me da teia em que me vi envolvido, este fim de semana, prolongado e tão complicado, isto psicologicamente, porque de resto foi dos melhores que já tive...!
Passei duas horas de caminho, sem apreciar a paisagem, sem aferir o muito ou pouco trânsito, sem mais em que me embutir senão no meu mais recente e maior puzzle humano de sempre, sempre a matutar, em como vou eu sair desta, ou a tentar decifrar, se quero ou não sair, desta história inimaginável.

- Dr. Mário … Oiço a Marlene e a maior das indiferenças aplicada naquela voz, que até tinha por hábito ser meiga… Tem um recado urgente em cima da sua secretária. Precisa de alguma coisa?
- Marlene, então e”Bom Dia”, já não se usa, neste escritório?
- Algumas coisas mudaram, por estes dias doutor.
- Sim?... Há novidades?!...Então, traz-me um café e vamos rever tudo.
- Trago já doutor. E saiu, sem um sorriso. Algo de estranho se passara, por aqui, também.

Pelo tom de Marlene, prevejo no imediato que, o resto da semana, será muito terra à terra, tão rotundamente frio, que o suponho desde já um resto de semana violento. Ela era tão certinha como eu. Como eu era, porque agora, depois disto já nem sei…Ainda estava a ambientar-me, como que a aterrar, deste sonho que começou sonho e, se tornou em dilema, e de dilema passou a grande confusão na minha cabeça, pior que isso, grande pancada, no meu coração.
Desde os meus vinte e cinco anos que não me sentia assim, tão enamorado, tão enfeitiçado por alguém, e era Sofia, quem não me saía do pensamento, como gravada no meu corpo. Em tão pouco tempo, conseguiu fazer-me de novo adolescente e esperançado, acreditar que havia alguém com quem eu poderia fazer um par.
Desde a Maria, a minha grande paixão, Maria, que me trocara por outro amor, há dez anos. E desde aí, todas eram marias passageiras para mim, sem que tivesse nunca nascido mais pequeno tipo de vontade de me prender a nenhuma, como agora, se insurgia este elo tão forte com Sofia.
Mas não, esta Sofia/Maria, também não era para mim, estava lá o Gabriel com ela, era casada, embora o seu cheiro ainda estivesse entre a minha pele e a ponta dos meus pelos, embora o toque macio e sábio dos seus lábios, ainda soubesse a pouco nos meus.
E mais, os dois queriam usar-me para terem um filho, uma criança que nem sequer desejavam, apenas queriam, para herdar, valores que se levantavam. Ou pelo menos, fora esta a treta que me impingiram.

Fui até á janela, e entreabri a persiana. O sol ameno e as nuvens brancas, e cheias de forma e expressividade, como que a 3 dimensões, as pudesse tocar, logo ali ao estender da mão, estas nuvens e, a luz de Lisboa, fizeram-me falta. Sim, estava a precisar de paz. Tinha uma resposta para dar a Sofia, até ao próximo fim-de-semana, e não estava minimamente interessado em trabalho, em acusações, em defesas, em argumentos, em provas, em esquemas viciados de processos obsoletos, que já nada me diziam, quando tinha em mãos este caso tão delicado e, tão simples ao mesmo tempo, para resolver.
Simples, porque não caberia na cabeça de ninguém aceitar uma proposta destas: Ser pai, de um filho que um casal queria ter, apenas para apoderar-se de uma herança.
Bolas, que coisa fria! Podiam ao menos ter-me dito que a esterilidade os mantinha infelizes, e que o sonho do casamento que os unia era terem esse filho, que me pediam. Mas não, nem isso, para tornar menos calculista e um pouco mais romântica esta proposta indecente que me deitaram aos pés... E, que seria dessa criança? Será que tinham pensado nisso?
Simples, porque bastava ter dito logo que não.
Mas torna-se tão delicado resolver um pedido pelo não, quando no fundo até queria ter mais uma vez, aquela mulher nos meus braços, no meu colo…
Eu dava-lhe todos os filhos que ela quisesse, se os quisesse meus, e para os ter comigo. Ah se ela soubesse…o quanto eu estava desejoso de plantar nela a minha semente…!

- Está aí doutor? Tem aqui o seu café.
Entrou a Marlene, e voltei a cair em mim. E começava a intrigar-me este desprezo todo.
- Então, só um? Não trazes para ti?
- Já bebi lá em baixo, obrigada. Se não precisa de mais nada, retiro-me, estou no meu lugar.
- O que aconteceu, no fim-de-semana por aqui?
- Por aqui nada…mas em compensação, o seu fim-de-semana deve ter sido muito interessante…! E voltou-me as costas, inabalável aquela Marlene que se revelava realmente zangada comigo hoje, por uma qualquer razão.

Tirei o casaco, agarro no pires do café, e em meditação suplico aos céus com todas as minhas forças, para que não hajam mais chatices destas para me distrair do que realmente hoje é importante para mim. Voltar a assentar os pés no chão, entupir-me de trabalho para esquecer e, depois sim, fazer uma cura de sono e arrumar as ideias, para me decidir, quanto ao que fazer com Sofia e com o seu pedido, seu e do seu marido, o meu amigo Gabriel. O estéril que não se importava que eu fecundasse a sua esposa, só para ganhar, muito dinheiro com isso, e só por isso. Estou definitivamente, a encher-me de revolta ao pequeno almoço.
Pouso de novo a chávena do café que já bebi de um só trago… e lá estava, o recado de que Marlene me avisara:
- “Doutor: Ligou a sua amiga Sofia, para dizer que esta madrugada, antes de sair, trocou os telemóveis. Ela vem a Lisboa amanhã. Assina: Marlene.”
Agora sim, percebia a indiferença, o amuo de Marlene, que nunca conseguiu demonstrar-se indiferente aos meus casos, e a quem um telefonema destes pela manhã, a deixara certamente, escandalizada, completamente incrédula.
Há meses, que Marlene me dizia para sair, para me distrair, para partilhar as horas pós laborais com uma presença feminina, acredito, sempre na esperança de um dia, eu a convidar a ser essa pessoa, a meu lado, em qualquer lado menos ali, no escritório.
E agora ela estava decepcionada comigo. Eu ligara ontem a dizer que, me tinha retido mais um dia fora, para estudar o caso que tinha em mãos, e para preparar a defesa de um amigo dela, que entendia inocente, numa acusação de burla agravada. E agora ela sabia, que eu mentira.
Sim, nem eu me reconhecia após este fim-de-semana. Dormi vezes sem conta e, amei outras tantas vezes, a mulher do Gabriel, a mulher que com ele, quer um filho meu. Baldei-me ao trabalho, e menti àquela que até hoje se achava a minha maior confidente, a minha dedicada assistente.
Abro a pasta que largara na poltrona há instantes, e pego o telemóvel. Sim, o meu e o da Sofia eram iguais, na cor e modelo, daí a troca. Sinto o seu perfume, neste objecto pequeno e raso, e não resisto a apertá-lo entre as palmas das mãos…e a abri-lo.
Levantei a tampa, e confirmo, o fundo escolhido não era o meu, não tinha a águia, nem o brasão do glorioso, tinha uma borboleta, bonita sem dúvida alguma, só poderia ser um telemóvel feminino, tal como a dona, sensual até nestes pequenos toques.
“Tem uma mensagem nova”, leio no visor, e instintivamente, aceitei ler, como se fosse o meu telemóvel, quase sem querer, mas no fundo, por querer mesmo ler, quem e o quê, escrevera à minha musa, nas últimas horas.
E, há uma ideia que baila, neste desenrolar do meu café da manhã, e frente a este recado de Marlene: Se Sofia ligou, sabia o número do escritório, e para saber, teve que o descobrir, mexendo no meu telemóvel, e consultando a minha agenda pessoal. Então, porque não posso eu fazer-lhe o mesmo?! Claro que posso…Desconcertado parti à descoberta do que não queria, naquele pequeno telefone, que Deus quisera pôr, nas minhas mãos.
O Remetente era apenas a palavra “Amor”, em maiúsculas, pelo que deduzi, fosse o Gabriel. E o SMS era curto: “Volto na sexta. O congresso é de 3 dias. Bruxelas precisa de mim. Beijos” …e de repente apanho um susto, que quase recuei atónito. O telemóvel tocou e vibrou nas minhas mãos, e inexplicavelmente, eu ao segurá-lo, atendi a chamada.
Estava em linha com o amor, do meu mais tempestuoso amor de sempre e, não podia dizer uma só palavra. Limitei-me a encostar o móvel ao ouvido e, a suspender a respiração, naquele minuto que se seguiu:
- Amor, recebeste o meu SMS?...sim amor …Sofia…está lá… Sofia… não deves ter rede, …já te ligo ….E desligou.
Ainda estava meio atordoado com este inesperado telefonema, tanto que me sentei abruptamente naquela poltrona que me recebeu sem qualquer queixume.
Do outro lado o Gabriel. Aqui, estou eu, e no meio a Sofia.
Mais uma vez, entrei em transe, e divaguei entre a realidade que eu queria e sentia, e a realidade que me tinham transmitido. Planava entre a frieza com que os dois, ele e ela, se tratavam na minha frente, e entre estas pequenas demonstrações de carinho e, mais baralhado ficava, com as cenas exaustivamente fantásticas de prazer que vivera nos últimos dias, com aquele amor, que não era meu.

A minha primeira vontade agora era voar para o Algarve outra vez. Sabia que o Gabriel ficaria fora por mais alguns dias, e mais, que no fim-de-semana, estando ele, não poderia estar eu, com Sofia.
E porquê viria ela a Lisboa?
Reaver o telemóvel?
Para isso servem as transportadoras.:!
Mais uma vez tinha a certeza, que ela também me queria, muito mais a mim, do que àquele filho, que não existia, e que nunca iria existir, pelo menos no final que eu idealizava, para esta história.
Já em cima da secretária, o telemóvel dela, voltou a tocar…

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