terça-feira, janeiro 23, 2007

A 100 À HORA - Capítulo 16


Capítulo 16

Por Ricardo Carvalho



O dia corria devagar.
Incrível como o tempo pode ser o nosso pior inimigo.
A conversa com Marlene não se sai da cabeça. Como a solidão nos conduz a situações como a que ela se encontra… existe realmente algo de muito errado na forma como escolhemos deixar a vida acontecer.
Sempre olhei para ela como apenas mais uma figurante no meu dia a dia. Não podia evitar sentir-me pessimamente com toda a situação. Tinha notado, claro, os seus discretos “avanços”, mas trabalho é trabalho. E por alguma razão, sentia estar a passar ao lado de algo. Se calhar controlo-me demais. Complicado isto de um gajo ter princípios.
Mas ela portou-se pessimamente. Abusou da confiança e posição que usufruía e isso não podia ter outro fim que a obvia ruptura profissional, mal seja possível.
Raios! Que estou eu a fazer?! A obrigar alguém a “dar-se” em troca de quê?! Isto tudo está realmente fora de controle…
Tinha de falar com Sofia.
Enquanto pegava no telemóvel, sentia o coração bater mais forte, as mãos suadas meias a tremer…
Raios! Estava vulnerável, era essa a verdade.
Apesar de toda a sujidade em redor, pensar em Sofia mexia com ele. Um dia jurou nunca mais se envolver desta forma. E tinha caído numa armadilha daquelas.
Como podia ele fazer outra coisa? Tinha de se afastar dela antes de chegar ao abismo que se adivinhava bem perto.
Resolvi sair dali. As paredes começavam a fechar-se sobre mim e nada melhor que uns quilómetros de estrada para desanuviar. Engraçado. Tudo aquilo tinha começado exactamente lá, numa qualquer estrada…
-Marlene, pode chegar aqui um momento? Vou sair e preciso de lhe falar.
-Sim claro.
Ela entrou meio a medo e claramente toda a sua postura tinha sofrido uma mutação. Nada mais seria como antes e naquele instante sentiu um aperto no peito.
As palavras não saiam. A verdade é que não sabia como lhe falar agora que ela era mais uma peça na confusão que se tinha tornado a sua vida.
-Sabe, tenho a maior estima por si. Ou tinha. Mas não se pode voltar atrás. Muitas vezes bem queremos, e talvez… bom, o que eu quero dizer é o seguinte: a nossa relação profissional chegou ao fim. Não posso trabalhar com alguém que não confio, ou pior, alguém que fez o que a Marlene fez.
-Mas doutor…
-Espere, vai poder falar claro. Mas já decidi. O que lhe estava a impor é terrível, pior até do que a menina fez. Não posso nem devo. Peço desculpa, foi no ímpeto do momento. Agora, entende que não posso confiar em si. Procure um bom emprego, dou-lhe tempo e óptimas referencias. Mas não posso continuar. Preciso de alguém de confiança, como sabe. Olhe, de alguém como julgava que a menina Marlene fosse! Enfim, não terá dificuldades tenho a certeza.
-Mas…- suspirou, olhos no chão - eu entendo claro. Mas saiba que ia contar-lhe tudo, mas não conseguia. Lamento imenso doutor.
-Pois eu também. Adiante. Olhe, prepare você mesmo as suas referencias, eu assinho. Agora vou sair. Não me ligue. Quero o resto do dia para mim. Amanhã estou cá bem cedo. Alguma duvida menina Marlene?
-Não senhor doutor. E… obrigado. Mal tenha a minha situação resolvida dir-lhe-ei.
Desatei estrada fora ao som de “She”. O Costello sabe do que fala. Pena não ter encontrado alguém que lhe despertasse aquele amor de que ele fala…
Aquilo com a Sofia era pura estupidez! Sem nexo. Tenho de pensar bem nisto.
Estava a ser um parvo, um objecto. Sexo?? Não seria apenas isso?
Confusão.
E a historia do testamento, etc, tudo muito estranho. Algo estava muito errado.
Mas que…? O telemóvel? Escritório! Arre!
-Sim. Que se passa? Não disse que…
-Desculpe doutor mas é que recebi uma chamada do… não sei se devo…
-Fale mulher! Que raios!
-Do Gabriel. Ele quer falar comigo. E estava irritado. Perguntou-me o que se tinha passado hoje de manhã, e eu não sabia o que dizer e…
-Sim, já esperava. E que lhe disse afinal?
-Nada. Apenas que não sabia se podia sair hoje. Depois achei melhor contar ao senhor doutor. Desculpe tudo isto, eu…
-Calma. A menina é mais uma vitima. Olhe, eu trato dele. Ligue-lhe e marque um encontro no seu apartamento. Eu passo já aí no escritório. Hoje vai ficar na minha casa, pode ser? Esse tipo tem de me ouvir.
-Claro doutor. Como quiser.

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